quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Papa Bento Homilia de Corpus Crist

"Este é o meu corpo, este é o meu sangue".

Queridos irmãos e irmãs,

estas palavras que Jesus disse durante a Última Ceia repetem-se de cada vez que se renova o Sacrifício eucarístico. Nós escutamo-las há pouco no Evangelho de Marcos e elas ressoam com notável poder evocativo hoje, Solenidade de Corpus Christi. Conduzem-nos ao Cenáculo e trazem a atmosfera espiritual daquela noite, quando, celebrando a Páscoa com os seus, o Senhor antecipou no mistério o sacrifício que seria consumado no dia seguinte sobre a cruz.

A instituição da Eucaristia surge como antecipação e aceitação de Jesus pela sua morte. Escreve a esse propósito Santo Efrém, o sírio: durante a ceia, Jesus sacrificou-se, na cruz Ele foi morto por outros (cf. Hino sobre a crucificação de 3, 1).

"Este é o meu sangue". Clara é aqui a referência à linguagem sacrificial de Israel. Jesus apresenta-se como o verdadeiro e definitivo sacrifício, no qual se realiza a expiação dos pecados, o que, nos ritos do Antigo Testamento, não fora ainda plenamente realizado. A essa expressão se seguirão outras duas muito significativas. Em primeiro lugar, Jesus Cristo disse que o Seu sangue era “derramado em favor de muitos", com uma compreensível referência aos cantos do Servo, encontrados no livro de Isaías (cf. capítulo 53). Com o acréscimo de "o sangue da aliança", Jesus deixa claro que, graças à Sua morte, finalmente se torna efectiva a aliança feita por Deus com o "Seu" povo. A antiga aliança fora estabelecida no Monte Sinai com o rito sacrificial de animais, como ouvimos na primeira leitura, e o povo eleito, libertado da escravidão no Egipto, havia prometido seguir as orientações do Senhor (cf. Ex. 24, 3).

Na verdade, Israel, com a construção do bezerro de ouro, mostrou-se incapaz de se manter fiel à aliança divina, que foi transgredida frequentemente, adaptando ao coração de pedra a Lei que era para ensinar o caminho da vida. Mas o Senhor não abdicou da sua promessa e, através dos profetas, chamou a atenção para a dimensão interior da aliança, e anunciou que gravaria esta nova lei nos corações dos fiéis (cf. Jer. 31, 33), transformando-os com o dom do Espírito (cf. Ez. 36, 25-27).

E foi durante a Última Ceia que fez com os discípulos esta nova aliança, não a confirmando com sacrifícios de animais, como no passado, mas com o seu sangue, tornado "sangue da nova aliança”.

Isto vem bem evidenciado na segunda leitura, retirada da Carta aos Hebreus, onde o autor sagrado declara que Jesus é o “mediador de uma nova aliança" (9, 15). Tornou-se isto graças ao seu sangue ou, mais precisamente, graças ao dom de si, dando pleno valor ao seu sangue.

Na Cruz, Jesus é ao mesmo tempo vítima e sacerdote: vítima digna de Deus porque sem mancha, e sumo sacerdote que se oferece a si mesmo, sob o impulso do Espírito Santo, e intercede por toda a humanidade. A Cruz é, portanto, mistério de amor e de salvação, que purifica a consciência da "opere morte", isto é, do pecado, e santifica-nos, esculpindo a nova aliança nos nossos corações; a Eucaristia, renovando o sacrifício da Cruz, faz-nos capazes de viver fielmente a comunhão com Deus.

Queridos irmãos e irmãs, a quem saúdo, a todos, com afecto, começando pelo cardeal vigário e os outros cardeais e bispos presentes; como o povo eleito reunido na assembleia do Sinai, ainda hoje queremos reafirmar a nossa fidelidade ao Senhor. Há poucos dias, na abertura da convenção anual diocesana, mencionei a importância de permanecer, como a Igreja, na escuta da Palavra de Deus, por meio da oração e do estudo das Escrituras, e em especial da prática da lectio divina. Sei que muitas iniciativas se fazem nas paróquias, seminários, comunidades religiosas, no âmbito das irmandades, associações e movimentos apostólicos, que enriquecem a nossa comunidade diocesana. Aos membros destes diferentes organismos eclesiais envio a minha fraterna saudação. A sua numerosa presença nesta grande festa, queridos amigos, põe em destaque a nossa comunidade, caracterizada por uma pluralidade de culturas e experiências diferentes; Deus a molda como ao "seu" povo, como o Corpo de Cristo, graças à nossa sincera participação na dupla mesa da Palavra e da Eucaristia. Nutridos de Cristo, nós, seus discípulos, recebemos a missão de ser a "alma" da nossa cidade (cf. Lettera a Diogneto [Carta a Diogneto], 6: ed. Funk, I, p. 400; ver também LG, 38), fermento de renovação, pão repartido para todos, especialmente para aqueles que estão em situações de sofrimento, pobreza e dor física e espiritual. Tornamo-nos testemunhas do seu amor.

Faço um apelo especial a vós, queridos sacerdotes, a quem Cristo escolheu, para que junto dele possam viver a vossa vida como sacrifício de louvor para a salvação do mundo. Só a partir da união com Jesus pode-se ter aquela fecundidade espiritual que é fonte de esperança no seu ministério pastoral. Recorda São Leão Magno que "a nossa participação no corpo e sangue de Cristo não tende a nada mais do que transformar-nos naquilo que recebemos" (Sermão 12, De Passione 3/7, PL 54). Se isto é verdade para cada cristão, é ainda mais para nós sacerdotes. Ser Eucaristia! Seja este o nosso desejo e esforço constante, para que a oferta do corpo e sangue do Senhor que fazemos sobre o altar esteja acompanhada do sacrifício das nossas vidas. Todos os dias, cultivemos pelo Corpo e Sangue do Senhor aquele amor livre e puro que nos faz dignos ministros de Cristo e testemunhas da sua alegria. É aquilo que os fiéis esperam de um padre: o exemplo do que é uma verdadeira devoção à Eucaristia; o amor que se vê ao passar longos momentos de silêncio e de adoração diante de Jesus, como fazia o Santo Cura d'Ars, que será lembrado de modo especial durante o Ano Sacerdotal.

São João Maria Vianney gostava de dizer aos seus paroquianos: "Venham para a comunhão... É verdade que não somos dignos, mas precisamos" (Bernard Nodet, Le Curé d'Ars. Sa pensée - Filho coeur, éd. Mappus Xavier, Paris 1995, p. 119). Com a consciência da inadequação por causa dos pecados, mas com a necessidade de nutrir-nos do amor que o Senhor oferece no sacramento eucarístico, renovamos esta noite a nossa fé na presença real de Cristo na Eucaristia. Não se deve ter como um dado adquirido esta fé!

Há hoje o risco de uma secularização intrínseca na Igreja, que se pode traduzir num culto eucarístico formal e vazio, em celebrações destituídas daquela participação do coração que se exprime na veneração e no respeito pela liturgia. É sempre forte a tentação de reduzir a oração a momentos superficiais e apressados, deixando-se submergir pelas actividades e preocupações terrenas. Quando em breve recitarmos o Pai Nosso, a oração por excelência, vamos dizer: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje", a pensar, naturalmente, no pão de cada dia. Esta questão contém, no entanto, algo mais profundo. O termo grego epioúsios, que traduzimos como "quotidiano", poderia também aludir ao pão "supra-substancial", o pão "do mundo a advir". Alguns Padres da Igreja viram aqui uma referência à Eucaristia, o pão da vida eterna que é dado na Santa Missa, a fim de que desde agora o mundo futuro comece em nós. Com a Eucaristia, portanto, o céu vem à terra, o advir de Deus ergue-se no presente e o tempo é abraçado pela eternidade divina.

Queridos irmãos e irmãs, como todos os anos, no final da Santa Missa, teremos a tradicional procissão eucarística e elevaremos, com orações e cantos, um coro de imploração ao Senhor presente na hóstia consagrada. Diremos a Ele em nome de toda a cidade: permanece connosco, Jesus, concede-nos o dom de ti e dá-nos o pão que nos alimenta para a vida eterna! Liberta este mundo do veneno do mal, da violência e do ódio que polui as mentes, purifica-o com a força do teu amor misericordioso. E a ti, Maria, que te fizeste mulher "eucarística" na tua vida, ajuda-nos a caminhar juntos rumo à meta do céu, alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo, pão da vida eterna e remédio da imortalidade divina. Amen!

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